Arquivo Histórico preserva documentos sobre período escravista em Jundiaí

Publicada em 22/11/2022 às 10:29

Como parte da programação do Novembro Negro e da Semana da Consciência Negra da Prefeitura deste ano, a Unidade de Gestão de Cultura (UGC) promoveu a palestra “A Jundiaí Colonial e Imperial Escravocrata”, mediada pelo diretor do Departamento de Museus da UGC, Paulo Vicentini, a partir de documentação do Arquivo Histórico municipal, disponível para acesso gratuito para interessados sobre o tema.

A atividade foi realizada no sábado (12), como parte da programação proposta para o mês pela Assessoria de Políticas para a Igualdade Racial, do Núcleo de Articulação de Políticas Públicas da Unidade de Gestão da Casa Civil (UGCC), e contou com as participações de diversos interessados no tema, no Município e região.

“A escravização de africanos e afrodescendentes está entre os mais nefastos e lucrativos crimes perpetrados contra a Humanidade. No Brasil, último País a aboli-la, suas consequências perduram até hoje, manifestadas na desigualdade social, racismo, xenofobia e ignorância. Costumo compará-las aos efeitos da força da gravidade: apesar de nem sempre sentidas, elas estão permanentemente atuando sobre nós”, argumentou Vicentini.

Vicentini mediou a palestra que integrou a programação temática

Durante a palestra foram apresentadas cerca de 40 fontes documentais do Arquivo Histórico, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, Torre do Tombo de Portugal e dos acervos de vários jornais de época.  Segundo Vicentini, todas as fontes apresentadas, exceção feita ao Auto de Criação de Jundiaí, oriunda de Lisboa, integram a coleção formada a pedido do então prefeito Miguel Haddad.

“A Prefeitura à época planejava instituir a lei que reservaria vagas em concursos públicos para candidatos afrodescendentes e queria, por meio da pesquisa, envolver a sociedade. A lei se tornou realidade em 2002, com o número 5.745, sendo Jundiaí o primeiro Município brasileiro a instituí-la. Porém, por uma razão ou outra, esses fundos se perderam, abrindo um hiato na transmissão dessas informações. Desde 2018, entretanto, a Cultura vem investindo numa nova infraestrutura para ampliar o rol de pesquisas e evitar que isso volte a ocorrer. Estas fontes são presença constante nas exposições temáticas e ações da Cultura”, salientou o diretor.

A fala se justifica. A reportagem de capa de A Província de São Paulo (atual O Estado de S.Paulo) relatando parte da trajetória e do casamento do ex-escravizado João Damásio dos Santos, publicada em outubro de 1883, surpreendeu o público. Com o auxílio de várias pessoas, Santos comprou sua liberdade e a da futura esposa. Logo em seguida, casaram-se na Matriz de Jundiaí, com direito à banda musical, banquete e vários discursos políticos pró-abolição.

“Foi um ato político republicano e abolicionista. O padrinho de casamento foi o então delegado Antonio Mendes Pereira, sistematicamente acusado de leniência com escravizados fugidos e quilombolas”, adiantou Vicentini, antes de esclarecer a referência ao professor Carlos Escobar ao longo da matéria. 

“Escobar foi homenageado em Santos, onde ganhou uma rua com seu nome, por sua luta em prol da alfabetização e politização dos escravizados, assim como pelo fim da escravidão no Brasil. Em Jundiaí, era ocupante de uma cadeira de ensino provincial. Vale lembrar que seu nome e suas ações sempre eram citadas como exemplo de ação política pelos mestres Carlos Franchi e Mariazinha Congílio”, afirmou.

Também causaram surpresa os documentos apresentados sobre os quilombos em regiões que pertenciam a Jundiaí. De acordo com eles, o quilombo de Itupeva pode ter se mantido por mais de um século; naquele mesmo período, no início de 1887, quilombolas de Itatiba seriam duramente atacados por tropas oriundas de Campinas.

“Há uma clara citação quanto ao pagamento de quatro mil réis para um Capitão do Mato de São Paulo capturar e degolar um quilombola de Itupeva em 1759. Esta fonte vem sendo utilizada há um século por historiadores. Mais tarde, a partir de 1880, há várias menções sobre levantes de quilombolas naquela mesma área. Um deles, inclusive, detalhado pelas reportagens, e que redundou na morte de várias pessoas, acabou estampada no Jornal do Commercio, o mais influente periódico do Brasil naquele período”, afirma Vicentini.

Muitas das fontes documentais mencionadas fizeram parte da última exposição no Museu “Patrimônios Culturais de Jundiaí

Em relação ao ataque contra quilombolas de Itatiba, ocorrido na atual região de Louveira, Vicentini diz que os indícios apontam para execuções sumárias destinadas à reafirmação do poder branco. “A tropa, reforçada por civis pagos, atacou no dia 9 de janeiro de 1887. Algumas matérias apontam a morte de quatro pessoas, sendo dois civis e dois quilombolas. Outras fontes apontam a morte de outros quatro quilombolas. De qualquer forma, o delegado de Jundiaí não foi previamente avisado. Ao saber do caso, exigiu a entrega imediata dos corpos e abriu inquérito para apurar os fatos”, diz Vicentini.

De acordo com o diretor, os quilombolas de Itatiba foram descritos pela reportagem de O Correio Paulistano, por exemplo, como “os mesmos que desde há muito infestavam Campinas e Jundiaí”.

“Note que os quilombolas são comparados a uma praga. É bom que se diga, sempre: eram sujeitos históricos em busca de sua justa liberdade. Não podemos confundir as reais vítimas, os escravizados, com os verdadeiros algozes dos conflitos…Os senhores de escravos. Foram eles que empregaram a violência durante séculos para escravizar africanos e afrodescendentes”, afirmou Vicentini, antes de ir além:

“Documentos do acervo da Assembleia Legislativa, datados de fevereiro de 1883, são precisos: lideranças políticas da região pediram oficialmente a destruição do quilombo de Itatiba, chegando até mesmo a compará-lo, em termos de perigo para a ordem regional estabelecida, ao quilombo de Itupeva”, salientou o diretor.

Vicentini destacou que o número de pessoas que compunham os quilombos é uma questão menos importante quando se trata da essência dos mesmos, que está na liberdade que seus integrantes alcançaram e na possibilidade de regerem suas próprias vidas, ainda que de forma temporária.

Em relação aos movimentos republicano e abolicionista em Jundiaí, Vicentini afirma que há fortes indícios de sua presença desde o início da década de 1860.

Em Sete de Setembro de 1862, uma banda musical, defronte à Cadeia, se recusou a executar o Hino Nacional, assim como músicas em louvor ao Imperador Pedro II. Mais: nas Atas da Câmara Municipal, notamos que os vereadores escravagistas fizeram de tudo para não regulamentar a Lei do Ventre Livre em 1871, mas foram combatidos duramente por homens como Francisco de Paula da Cruz, companheiro de partido de Luiz Gama. As tensões políticas geradas neste período, entre diferentes grupos, vão se prolongar até mais ou menos 1912”, diz Vicentini.

Nas Atas da Câmara, encontram-se as movimentações dos vereadores acerca da regulamentação da Lei do Ventre Livre

Vicentini encerrou a palestra apresentando fontes que podem servir de referências geográficas à cidade, ao pontuar que o Traslado do Auto de Criação da Vila de Jundiaí, de 1656, coloca textualmente o primeiro pelourinho defronte à Capela erguida por Rafael de Oliveira.

“Mas é bom estarmos atentos ao fato de que a tortura e a sevicia contra os africanos e afrodescendentes independia de marcos. Temos fontes que comprovam práticas de tortura, assassinatos e linchamentos na região. Seja em fazendas, seja em canteiros de obras, como um escabroso caso ocorrido durante a construção da Santos – Jundiaí, ou mesmo na área urbana, como aquele de 1880, quando um escravizado foi brutalmente assassinado em Jundiaí. Apesar de a imprensa local denunciar e de o fato repercutir nacionalmente, nunca encontramos o registro de sepultamento dessa vítima”, ressalva o diretor.

Vicentini, por fim, apontou a estalagem do Barão da Ponte, na Ponte de Campinas, como um dos endereços de revenda de escravizados em Jundiaí. “O auto-intitulado Barão da Ponte, José Pinto da Costa Guimarães, foi imortalizado por intelectuais de peso como Angelo Agostini e Visconde de Taunay. Dispomos de anúncios seus se prontificando a comercializar seres humanos, ao mesmo tempo em que sabemos de suas interações com negociantes de São Paulo. Temos outros possíveis endereços, um deles na Rosário, mas ainda sujeitos à efetiva comprovação”, finalizou o diretor.

De qualquer forma, Vicentini ressaltou tanto a violência inerente à escravidão quanto as múltiplas táticas dos escravizados na luta por liberdade e autonomia.

“Temos que evitar que o Brasil varra para debaixo do tapete tamanho passado de violência e racismo. A Prefeitura e a UGC, insisto, vêm dando suas contribuições. Ajudar a recuperar as vozes de tantos sujeitos históricos, especialmente as das vítimas, é um processo demorado. Porém, as instituições municipais estão conscientes e comprometidas com a causa, bem como estão incentivando a participação das comunidades e pesquisadores interessados no tema”, finalizou o diretor.  

O assessor de Políticas para a Igualdade Racial de Jundiaí, Jensen Silva, reforçou a importância da atividade no contexto da programação do Novembro Negro. “Atividades como esta que fomentam o conhecimento sobre a Cultura e História da comunidade negra são as mais importantes do calendário e serão realizadas com cada vez mais frequência. Este encontro com o Paulo, por exemplo, não é o primeiro que realizamos e dele surgiram temas extremamente importantes para a comunidade”.

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Ao longo do texto, todas as menções às fontes documentais do Arquivo Histórico podem ser consultadas através de hiperlinks. Esses e outros documentos do Arquivo podem ser acessados gratuitamente, mediante solicitação prévia, pelo telefone (11) 4589-6817 ou pelo e-mail arquivohistorico@jundiai.sp.gov.br. O Arquivo Histórico municipal fica na avenida União dos Ferroviários, 1760 – Espaço Expressa (antigo Complexo Fepasa).

Assessoria de Imprensa
Fotos: Fotógrafos PMJ


Link original: https://jundiai.sp.gov.br/noticias/2022/11/22/arquivo-historico-preserva-documentos-sobre-periodo-escravista-em-jundiai/

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